
Vivemos um momento em que a ciência médica avança a passos largos, trazendo esperança para quem luta contra o excesso de peso — ao mesmo tempo em que surgem perigos que merecem atenção redobrada. Um desses perigos tem se materializado no comércio clandestino de seringas ou canetas que supostamente contêm a molécula chamada Retatrutida.
Mas afinal, o que é a retatrutida? Ela é uma substância em estudo, desenvolvida pelo laboratório Eli Lilly, que age como um estimulador de três receptores hormonais ao mesmo tempo: GLP‑1, GIP e glucagon. Estudos clínicos em fase 2 mostraram que, em participantes com obesidade ou sobrepeso e sem diabetes, o uso da Retatrutida por cerca de 48 semanas levou a perdas de peso da ordem de média 24% do peso corporal.
Trata‑se de uma cifra que ultrapassa em muitos casos as resultantes de outros medicamentos aprovados para redução de peso e se aproxima de resultados observados em cirurgias bariátricas.
+Leia também: Retatrutida: conheça o remédio que promete emagrecer mais que Mounjaro
Essa combinação de alta promessa de eficácia e o fato de estar ainda em fase de estudo gera ao mesmo tempo entusiasmo e alerta. Entusiasmo porque há potencial para um avanço real no tratamento da obesidade, que é uma doença com alto impacto na saúde pública. Alerta porque não sabemos ainda totalmente os riscos, os efeitos colaterais de longo prazo ou os impactos em populações específicas.
Apesar de ser promovida por alguns como “remédio milagroso de emagrecimento”, a Retatrutida não está aprovada para comercialização no Brasil e nem em outros países, fora ensaios clínicos controlados. Isso significa que não há ainda autorização regulatória (por exemplo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA no Brasil) para que esse medicamento seja vendido legalmente. Os estudos de fase 3 (última etapa antes da liberação oficial) ainda estão em curso ou em avaliação.
Na prática, isso traz duas implicações imediatas:
- Não há garantia de segurança ou eficácia para uso amplo: os resultados até agora são promissores, mas tempo de acompanhamento, efeitos de longo prazo, uso em diferentes perfis de pessoas (idosos, grávidas, crianças, com comorbidades) ainda não foram completamente avaliados.
- Qualquer uso fora de ensaio clínico controlado é uso irregular ou experimental: se o medicamento está sendo comercializado, vendido ou aplicado sem regulamentação, tratamento supervisionado e rastreabilidade, isso configura risco à saúde.
É exatamente essa segunda implicação que tem chamado atenção das autoridades de saúde no Brasil. Recentemente, houve apreensões de unidades da Retatrutida sendo introduzidas clandestinamente no país — por viajantes ou por envio pela internet — sendo anunciadas em redes sociais como “canetas emagrecedoras milagrosas”.
Segundo reportagem, em uma operação a Receita Federal apreendeu 60 unidades do medicamento “Synedica Retatrutide”, contrabandeadas em uma passageira de Madri com destino a Fortaleza. O comércio clandestino desse tipo traz várias camadas de risco. Pode não se tratar de Retatrutida ou da dose correta, ou mesmo da substância original.
Mesmo que fosse a Retatrutida, não se sabe se foi armazenada corretamente, se segue padrões de qualidade ou se está contaminada. O fato de haver um mercado paralelo cria a ilusão de que o uso é “certificado” ou “comercial”, o que pode levar pessoas a consumirem sem orientação médica, sem exames prévios, sem acompanhamento.
Isso acaba gerando atenção para a “polícia” e para o controle sanitário, quando o foco principal deveria ser a saúde da pessoa que consome — e a vulnerabilidade de quem busca emagrecimento rápido.
Uma questão central é: como está acontecendo esse comércio se a Retatrutida ainda não foi liberada e não deveria estar no mercado? Não há uma resposta unívoca disponível, mas podemos levantar hipóteses para a reflexão:
- Produção clandestina ou falsificada: alguém pode estar fabricando substâncias que se declaram como Retatrutida sem seguir padrões de garantia, ou mesmo usando outros compostos.
- Desvio de amostras de pesquisa: teoricamente, substâncias ainda em estudo são controladas, porém o tráfego ilegal pode ocorrer por infiltração, falhas de regulação ou de fiscalização internacional.
- Importação irregular: pode haver envio de canetas-dose ou soluções vindas de fora, sem autorização, através de fronteiras, malas, correios, ou outros arranjos.
- Manipulação ou “modificação” em farmácias de manipulação ou laboratórios informais: com promessas atraentes, pode haver adulteração ou apresentação enganosa do produto.
Em resumo, não se sabe se é Retatrutida o que está sendo vendido; tampouco se a dose, a pureza ou a origem são confiáveis. Em nenhuma parte do mundo o uso está liberado para compra sem prescrição ou fora de estudo clínico controlado. O consumidor que adquire esse tipo de produto está assumindo um risco significativo.
+Leia também: Polícia apreende Mounjaro falsificado em dois estados; conheça os riscos
Por que isso é um problema de saúde pública – e não apenas individual
É importante entender que essa situação não é apenas “uma pessoa que fez uma escolha equivocada”. Há implicações amplas, pois aumenta o estigma da obesidade: quando novas moléculas com potencial real (como a Retatrutida) são apontadas mais no contexto de “uso ilegal” ou “contrabando” do que no contexto de tratamento sério, a mensagem que vai para a sociedade é: “emagrecimento = remédio milagroso = risco”.
Isso reforça o estigma sobre a obesidade, desviando atenção da necessidade de políticas, de tratamento multidisciplinar, de abordagem médica adequada.
Se pessoas, sem supervisão médica, injetam substâncias com potencial desconhecido, pode haver efeitos adversos que exigem atenção de saúde pública — desde reações locais, infecções, problemas metabólicos, efeitos ainda não conhecidos.
Quando se propagam casos de “remédios clandestinos”, a sociedade pode se tornar cética em relação a novos tratamentos legítimos, ou pode emergir um mercado paralelo mais inacreditável ainda, colocando mais vidas em risco.
Reduzir o peso corporal quando há excesso é um benefício real para a saúde — melhora da insulina, da pressão arterial, das gorduras no sangue, da mobilidade, da qualidade de vida. No entanto, a perda de peso sozinha não garante “cura” ou ausência de risco: é preciso que seja obtida com segurança, com acompanhamento, com manutenção.
Prometer “emagrecimento de 20‑30% em 1 ano” (como nos estudos com Retatrutida) gera expectativas altas — mas correspondem a ensaios clínicos controlados e não ao uso sem supervisão. O emagrecimento “vale” se for alcançado com saúde — não se trata apenas de “menos quilos no corpo”, mas de “melhor saúde do corpo”.
Como colunista da VEJA Saúde, confesso o temor de que novas moléculas aparentemente revolucionárias — como a Retatrutida — possam, antes de ser ofertadas de forma segura e regulamentada, cair na mão de pessoas inescrupulosas que as vendem como “milagre” a quem está desesperado por emagrecer. E esse risco não é abstrato: o que vemos já é o mercado paralelo, as vendas online, as propagandas em redes sociais que ocultam a gravidade do uso sem controle. A solução rápida pode parecer sedutora — mas o risco silencioso, esse sim exige atenção.
Compartilhe essa matéria via: