
Imagine ser um naturalista europeu que chega ao Brasil pela primeira vez e vê uma explosão de biodiversidade inédita para ele.
Foi isso que fez o naturalista alemão Johann Baptist von Spix (1781-1826), pegando carona na frota da princesa intelectual austríaca (depois Imperatriz do Brasil) Carolina Josefa Leopoldina Francisca de Habsburgo-Lorena, junto com seu colega também alemão Carl Friedrich von Martius em 1817.
Os dois alemães infiltrados na missão austríaca literalmente andaram por todo o Brasil, estudando, registrando e coletando (e mandando para a Alemanha, claro) fauna, flora e aspectos antropológicos do Brasil.
Uma das aves encontradas por Spix foi um papagaio azul (em grego kyanos (azul) e psitta (papagaio)), que, em sua homenagem, foi chamada de Cyanopsitta spixii, mas que nós nativos chamamos de ararinha-azul.
E foi tanto o interesse nessa ave que ela foi quase levada à extinção. Se não fosse pelo empenho de colegas biólogos e veterinários, só teríamos a ararinha-azul empalhada em museus (como a única que vi até hoje). Mas aí entra uma outra ameaça à espécie, vinda da Virosfera, e que está começando a voar pelas notícias: o circovírus.
Recentemente, foi confirmado que 11 ararinhas-azuis reintroduzidas na natureza foram infectadas pelo patógeno.
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O que é o circovírus
Pense um vírus dez vezes menor que o coronavírus e sem um envelope. Esse é o circovírus, cujo nome vem do fato de seu minúsculo genoma de DNA fechar-se sobre si mesmo, formando um anel. Falando em anel, os circovírus têm parentes chamados de (atenção, fãs de Tolkien) Andurilvirus erebor, Palantirivirus e por aí vai.
O circovírus de que estamos falando agora é chamado de Vírus da doença do bico e das penas, que nas ararinhas-azuis e em seus parentes psitacídeos causa isso mesmo: deformidades nas penas e nos bicos, além de sintomas mais graves que podem levar os animais à morte.
Esse vírus, possivelmente surgido na Austrália, pegou carona no comércio (legal e ilegal) internacional de animais e se transmitiu por aí. O circovírus dos psitacídeos é só deles e não passa para outros grupos de aves nem de mamíferos. Mas galinhas têm seu próprio circovírus, bem como porcos e nós, humanos, temos o nosso próprio.
Não há tratamento específico nem vacina para os psitacídeos. O vírus se transmite de arara para arara, papagaio para papagaio e etc. Já está confirmado que as ararinhas-azuis têm esse circovírus.
Para o controle de qualquer doença transmissível, identificar quem está infectado é um passo fundamental e, para isso, temos que usar o que há de melhor. No caso, usamos o mesmo estilo de teste que usamos para a Covid-19, o PCR em tempo real, que consegue pegar quantidades mínimas do vírus e é menos sujeito a trapalhadas que às vezes acontecem em laboratórios e que “sujam” amostras, o que é tão ruim quanto (o nerd em mim fala mais forte, desculpe) andar sozinho até Mordor!
Mas de onde é que veio o circovírus que está nas ararinhas? Da vida selvagem? Do cativeiro? Para isso, em conjunto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Ministério da Agricultura e a Polícia Federal, nós aqui no meu laboratório na USP estamos fazendo nesse momento sequenciamento de DNA desse vírus, o que vai nos permitir traçar seus caminhos.
A única finalidade de tudo isso é salvar as araras do Herr Spix e todos os seus parentes. Nesse sentido, colegas do ICMBio estão fazendo um trabalho isento, técnico e com muito carinho pelas aves. Só com este tipo de trabalho e com ciência dá para evitar que o papagaio leve a fama pelo milho que o periquito comeu.
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