
Em vários países, dia após dia, os alimentos ultraprocessados têm tomado conta da cozinha e empurrado para o canto as comidas naturais. No Brasil, há quarenta anos, esses produtos respondiam por 10% do que as famílias levavam para casa ao fazerem compras. Hoje, já abocanham cerca de 23% do carrinho.
Em outras palavras, eles representam quase um quarto das calorias presentes em nossa cesta de compras. Isso significa um aumento de 130% em comparação com quatro décadas atrás.
Os dados estão na nova série de estudos The Lancet – Alimentos Ultraprocessados e Saúde Humana, lançada no Brasil nesta quarta-feira (3).
Após a exposição para o mundo em Londres, o material ganhou apresentação nacional na sede da Fiocruz em Brasília. O evento foi organizado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), pelo Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (World Food Programme – WFP), pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e pelo Ministério da Saúde.
A série, liderada por cientistas do Nupens ao lado de parceiros da Austrália e do Chile, revisou centenas de estudos que evidenciam não só uma mudança na alimentação das comunidades, como também a associação entre esse novo consumo e o risco de doenças crônicas.
Mudança no padrão alimentar
De 2007 a 2022, as vendas de ultraprocessados dispararam mundo afora, especialmente onde a renda é mais baixa.
Para exemplificar, o primeiro artigo da série apresenta uma análise conduzida pela empresa de pesquisa de mercado Euromonitor sobre o tema. De acordo com o estudo, em Uganda, único país de baixa renda avaliado, o consumo per capita de ultraprocessados já cresceu 60%. Já nos países de renda média-baixa, o aumento foi de 40%, e, nos de renda média-alta, de quase 20%.
Nos Estados Unidos e no Reino Unido, os ultraprocessados já ocupam mais da metade da dieta, mas houve pouca mudança nos últimos 20 anos. Para os pesquisadores, isso acontece porque, por lá, esse novo padrão alimentar já está consolidado.
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Ultraprocessamento é altamente lucrativo
Entre 1962 e 2021, dos US$ 2,9 trilhões pagos a acionistas por empresas do setor alimentar, mais de 50% foram de fabricantes de alimentos ultraprocessados.
Para os pesquisadores do Nupens e seus parceiros, essa lucratividade gera excesso de recursos para influência política coordenada globalmente e estratégias de marketing intensivas e bem financiadas.
Como resultado, diz a análise, cresce o poder corporativo nos sistemas alimentares e o controle sobre o que as pessoas comem.
A pesquisadora Marion Nestle é uma das co-autores do estudo. Bióloga molecular, ela é professora emérita da Faculdade de Nutrição, Estudos Alimentares e Saúde Pública da Universidade de Nova York. Segundo a especialista, a publicação da série abre diversos novos caminhos.
O primeiro deles, diz Marion, é a nova definição de ultraprocessados. Ela resume a categoria como “produtos de marca feitos com substâncias baratas derivadas de alimentos e aditivos, projetados e comercializados para substituir alimentos de verdade e refeições preparadas na hora, enquanto maximizam os lucros da indústria“.
“Eles [esses alimentos] são pensados para serem irresistivelmente deliciosos, para que você queira comer mais e mais”, explica a docente.
Portanto, agora ultraprocessados podem ser entendidos como comida feita com o propósito de gerar lucro às companhias. “Isso é importante porque é a primeira vez que vejo esse propósito tão bem definido em um artigo científico”, celebra Marion.
A bióloga também destaca que a relevância da série de estudos está na revisão das evidências científicas sobre o efeito dos ultraprocessados, “que a esse ponto são impressionantes”, adianta.
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Relação com doenças
Dos 104 estudos analisados pela equipe, 92 encontraram uma relação direta entre o consumo elevado de ultraprocessados e o aumento do risco de diferentes doenças crônicas. Entre esses 92 trabalhos, 78 mostraram que quanto maior a exposição aos ultraprocessados, maior o risco.
No total, a alta ingestão desse tipo de produto foi associada a maior probabilidade para 12 desfechos importantes: sobrepeso e obesidade, obesidade abdominal, diabetes tipo 2, hipertensão, colesterol alto, doenças cardiovasculares, doença coronariana, doença cerebrovascular, doença renal crônica, doença de Crohn, depressão e mortalidade por todas as causas.
Para os pesquisadores, mecanismos que explicam esses danos são desequilíbrios múltiplos de nutrientes; hiperpalatabilidade que leva ao excesso de consumo; aumento da ingestão de compostos tóxicos; e exposição a aditivos e misturas de aditivos potencialmente prejudiciais.
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Além disso, as chamadas análises de mediação, apresentadas na série, também ajudam a identificar quais aspectos da dieta estão por trás dessas associações. O estudo italiano Moli-sani, por exemplo, mostrou que 20% a 33% da relação entre o consumo de ultraprocessados e a mortalidade – geral e cardiovascular – pode ser explicada pelo alto consumo de açúcar.
Outra pesquisa, nos Estados Unidos, apontou que cerca de 12% da associação entre ultraprocessados e diabetes tipo 2 é mediada por fatores ligados à qualidade da dieta, como baixa ingestão de fibras e alta ingestão de amido refinado, açúcar adicionado, sódio, minerais e óleos parcialmente hidrogenados.
Além disso, uma meta-análise que incluiu 13 países previu que quanto maior a participação dos ultraprocessados na dieta, menor a ingestão de frutas, verduras e legumes, que são fontes de fitoquímicos protetores da saúde.
Segundo a estimativa, se os ultraprocessados correspondem a 15% das calorias, frutas, verduras e legumes, representam 12,4% da ingestão energética. Já quando os ultraprocessados chegam a 75% das calorias, a participação dos vegetais em teoria cairia para apenas 4%.
Questão de saúde global
Os pesquisadores defendem que os ultraprocessados sejam reconhecidos como uma questão global de saúde, impulsionada por interesses comerciais, de forma semelhante ao tabaco. Marion considera que a evidência de que as pessoas seriam mais saudáveis se comessem menos ultraprocessados é bastante sólida e pondera: “não sei quanta evidência mais seria necessária”.
Para enfrentar o problema, os autores do texto sugerem a construção de coalizões internacionais, reunindo sociedade civil, especialistas, governos, ONU e mídia, e o uso de políticas públicas integradas, como impostos sobre ultraprocessados, restrições de marketing, rotulagem clara e compras públicas voltadas para alimentos saudáveis.
Os cientistas também alertam para a importância de garantir transições justas para dietas com baixo consumo desses produtos, evitando estigmatização e protegendo a segurança alimentar.
Para isso, entre as recomendações também estão reduzir o poder corporativo e redistribuir recursos, financiar o acesso de famílias de baixa renda a alimentos frescos e acabar com subsídios para commodities usadas em ingredientes industriais.
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