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A lichia é uma pequena fruta tropical e subtropical da família das sapindáceas — a mesma do guaraná. Ela carrega por fora uma casca rígida e rosada, não comestível, enquanto por dentro guarda uma deliciosa polpa branca, suculenta e muito doce.

Essa fruta advém da árvore Litchi chinensis que, como o nome dá pista, é originária da China. Além de lá, também é cultivada em mais de 20 países, principalmente do Sudeste Asiático, mas também no Brasil.

Na lista de benefícios à saúde, a lichia conta com uma rica presença de vitaminas, antioxidantes (compostos que protegem as células de agressões) e polissacarídeos (carboidratos que servem como reservas de energia). Aliás, essa sapindácea chega a carregar mais vitamina C até mesmo do que a laranja.

Não é de se esperar, portanto, que alguém diga que essa fruta faz mal à saúde, certo? Errado.

Pois é. Embora não prejudique a imensa maioria das pessoas, a lichia ganhou fama de potencialmente perigosa devido a um importante estudo com crianças da Índia, publicado na revista The Lancet em 2017. Entenda:

De onde veio a suspeita

A pesquisa de 2017 investigou surtos sazonais de um distúrbio neurológico desconhecido que matou centenas de crianças ao longo de duas décadas no estado indiano de Bihar — a maior região produtora de lichia do país.

As vítimas apresentavam convulsões, perda de consciência e, em muitos casos, evoluíam rapidamente para o coma e o óbito. Por anos, não se soube qual a razão desses quadros acontecerem. Mas, então, um ponto em comum entre as crianças chamou a atenção dos cientistas: a ingestão de grandes quantidades de lichia com o estômago vazio.

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Entre as chaves para resolver o mistério, notou-se também que os surtos começavam em maio e atingiam o pico em junho, coincidindo com a safra da fruta.

Além disso, exames descartaram infecções ou exposição a pesticidas e o estudo mostrou que a maioria das pessoas afetadas vivia em áreas pobres e consumia os frutos caídos de plantações.

Foi aí que as análises laboratoriais encontraram na urina de cerca de dois terços das crianças doentes metabólitos de toxinas naturais presentes na lichia: a hipoglicina A e o MCPG (metileneciclopropil glicina). Ao mesmo tempo, descobriu-se que as amostras de lichia da região continham níveis elevados dessas substâncias.

Essas toxinas interferem na regulação da glicose (açúcar) pelo fígado, que tem a função de estocá-la e distribuí-la para o corpo, especialmente durante o jejum. Essa desregulação pode levar à uma queda brusca da glicose no sangue – que é uma importante fonte de energia –, causando um quadro chamado hipoglicemia.

Por sua vez, a hipoglicemia profunda pode causar distúrbios no sistema nervoso.

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Então, lichia faz mal?

Apesar dos resultados da Lancet assustarem, a lichia, em si, não faz mal. O problema envolve uma combinação específica: ingestão excessiva, jejum prolongado e vulnerabilidade nutricional.

O estudo apontou como fator decisivo para o adoecimento das crianças, além do consumo de lichia nas 24 horas anteriores ao início dos sintomas, a ausência de jantar na noite anterior, o que, segundo os pesquisadores, praticamente dobrou o risco.

Resumindo, o problema surgiu quando a fruta foi ingerida em grandes quantidades por crianças desnutridas. Nesse contexto, houve uma queda intensa da glicemia que causou encefalopatia.

A nutricionista funcional Estela Queiroz, doutora em Bioquímica pela Universidade Federal de Lavras (UFLA), onde conduziu pesquisas sobre a fruta, explica, ainda, que muitas pesquisas mostram que, além dos nutrientes, é comum que existam nos alimentos (não só na lichia) compostos que podem ter efeitos tóxicos ao organismo.

Por isso, de maneira geral, não é preciso se alarmar. “A lichia é segura. Especialmente quando consumida após refeições, inserida numa dieta com adequado aporte energético e em quantidades moderadas, o risco se torna mínimo ou inexistente”, avalia Estela.

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Além disso, vale dizer que a hipoglicina A e MCPG estão presentes, principalmente, nas frutas verdes ou imaturas e nas sementes (que não devem ser consumidas). Portanto, uma recomendação é sempre comer a fruta madura.

+Leia também: Lichia: conheça os benefícios da fruta e saiba como plantar em casa

Quem deve evitar a fruta?

De acordo com Estela, crianças pequenas, especialmente em jejum, indivíduos com risco de hipoglicemia ou com desnutrição, além pessoas com diabetes ou que utilizam medicamentos da classe das sulfonilureias devem evitar grandes quantidades da fruta, especialmente em jejum.

“No geral, cerca de cinco a 10 unidades por dia, junto ou após refeições, cabem para a maioria da população“, indica a nutricionista.

Benefícios seguem valendo

Fora cenários extremos como o descrito nos surtos indianos, a lichia segue firme no time das frutas nutritivas. Do ponto de vista nutricional, a Litchi chinensis entrega um combo interessante de polissacarídeos, vitaminas, minerais e compostos bioativos (que têm ação antioxidante). Não é pouca coisa para uma fruta tão pequena.

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Entre os micronutrientes, aparecem potássio, cálcio, ferro, fósforo, zinco e sódio, além de vitaminas do complexo B, vitamina E e folato, nutrientes importantes para o metabolismo energético, a saúde muscular e o funcionamento do sistema nervoso.

Mas o grande destaque vai mesmo para a vitamina C. Em 100 gramas da fruta, há cerca de 72 miligramas do nutriente, o equivalente a 86% da ingestão diária recomendada. Traduzindo: algo em torno de nove unidades de lichia já bastariam para bater a meta diária, sugerem análises da Universidade Islâmica (IU).

Assim, algumas funcionalidades estudadas para essa fruta são, principalmente:

Potencial antioxidante

Boa parte do interesse científico em torno da lichia nasce do seu potencial antioxidante. A fruta é rica em flavonoides, taninos e ácidos fenólicos, compostos capazes de ajudar a neutralizar os radicais livres, moléculas associadas ao envelhecimento celular e ao desenvolvimento de doenças crônicas.

Mas a maioria desses achados vem de estudos in vitro ou com extratos concentrados da fruta, e não do consumo da lichia fresca em humanos. Ou seja, o potencial bioquímico existe, mas isso não autoriza dizer que comer lichia, sozinha, previne doenças.

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Em sua tese de doutorado, por exemplo, Estela observou que, em estudos com animais, substâncias retiradas da casca e da semente da lichia ajudaram a reduzir colesterol e triglicérides. Ela também notou um efeito positivo de redução do açúcar no sangue de maneira controlada.

Esses benefícios, segundo a pesquisadora, podem estar ligados à ação antioxidante de compostos naturais da fruta, que ajudam a combater danos nas células.

Mas ela faz o alerta de que esses resultados ainda não valem para pessoas. As pesquisas foram feitas apenas em laboratório, e são necessários estudos com humanos para saber se os efeitos são seguros e realmente funcionam.

E o cuidado precisa ser redobrado já que agora existem os indícios de potencial para toxicidade, especialmente em compostos presentes na semente da lichia. “Antes de qualquer recomendação terapêutica, novas evidências científicas sobre hipoglicina A e MCPG precisam ser investigadas”, pondera a pesquisadora.

Efeitos anti-inflamatórios

Outro campo que vem despertando curiosidade é o possível efeito anti-inflamatório. Pesquisas indicam que compostos presentes na fruta conseguem reduzir a produção de mediadores inflamatórios. Alguns desses resultados foram observados tanto em culturas celulares quanto em modelos animais, incluindo diminuição de edema e da resposta inflamatória em ratos tratados com extratos de sementes de lichia.

No entanto, de novo, apesar dos dados promissores, faltam ensaios clínicos bem desenhados em humanos para confirmar esses efeitos no dia a dia.

Ação antimicrobiana

Estudos preliminares apontam uma possível atividade antimicrobiana de extratos de lichia contra bactérias e fungos. Esses achados chamam a atenção não só da área da saúde, mas também da indústria alimentícia, cosmética e farmacêutica, que investiga o uso desses compostos como conservantes naturais ou ingredientes de produtos dermatológicos.

Lichia no banco dos réus

Depois de ouvir as “testemunhas”, analisar as provas e considerar o contexto, o julgamento final é de que a lichia não é vilã. Quando consumida dentro de uma alimentação equilibrada, não oferece riscos.

O problema surge com o consumo excessivo, sobretudo em jejum, especialmente entre crianças ou pessoas desnutridas, pois a fruta possui substâncias que podem derrubar rapidamente o nível de açúcar no sangue.

Isso pode ser explicado de uma forma simples. Quando ficamos em jejum, o corpo passa a usar a gordura como fonte de energia para manter o açúcar no sangue estável. E aí que as substâncias presentes na semente da lichia e em frutos ainda verdes podem bloquear esse processo.

“Em crianças desnutridas, sem reservas energéticas, esse mecanismo pode fazer a glicose cair rapidamente e levar a convulsões e encefalopatia”, reitera Estela.

Ainda assim, conforme elegeu uma revisão publicada em periódico da Springer Nature, a lichia se enquadra no conceito de alimento funcional. Isso quer dizer que é uma fruta que, além de nutrir, pode influenciar positivamente processos fisiológicos e metabólicos do organismo.

“A lichia pode ser considerada uma fruta com potencial bioativo, especialmente por seu conteúdo de polifenóis, flavonoides e vitamina C, que contribuem para a redução do estresse oxidativo e apoiam a saúde cardiovascular, pela
ação antioxidante e anti-inflamatória”, avalia Estela.

“Ela pode integrar estratégias alimentares antioxidantes no contexto de uma alimentação equilibrada”, diz.

Assim, a fruta está liberada para o consumo. Estela Queiroz dá o veredito: “na prática clínica, o consumo da polpa da lichia não oferece riscos, desde que seja parte de uma dieta variada e rica em frutas, sem extrapolar seu uso como ‘alimento funcional terapêutico’ e com atenção especial em pessoas com distúrbios glicêmicos, já que é rica em açúcares”.

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