A primeira coisa que Marjorie Estiano pergunta quando recebe um convite para trabalhar na tevê, no cinema ou no streaming é: “Começa quando?”. Se houver espaço livre na agenda, ela não pensa duas vezes.

Quando comprou os direitos do podcast Praia dos Ossos, lançado pela Rádio Novelo em 2020, seu nome foi o primeiro no qual o diretor Andrucha Waddington pensou para interpretar a socialite mineira Ângela Diniz.

Os dois se conheceram em 2016, quando Waddington dirigiu Estiano no filme Sob Pressão, adaptado do livro homônimo de Márcio Maranhão.

Na tevê, voltaram a trabalhar juntos em 34 dos 59 episódios da série médica. Quando foi convidada para interpretar a personagem-título da minissérie da HBO Max, Estiano aceitou o convite antes mesmo de ler o roteiro escrito por Elena Soárez, Thais Tavares e Pedro Perazzo.

Uma minissérie que revisita a impunidade

O canal de streaming já disponibilizou o sexto e último episódio de Ângela Diniz: Assassinada e Condenada. A minissérie começa em 1970, com a separação de Ângela e Milton Vilas Boas, e termina em 1979, com o primeiro julgamento de Doca Street.

Acusado de matar a companheira com quatro tiros à queima-roupa, foi condenado a dois anos de prisão. Como já tinha cumprido mais de um terço da pena, saiu do tribunal pela porta da frente.

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O advogado do réu alegou legítima defesa da honra. Segundo essa tese, um homem poderia, em caso de adultério, matar a esposa ou a namorada.

Durante o julgamento, ele transformou o assassino em vítima e a vítima, em ré. “Estão quase conseguindo provar que Ângela matou Doca”, ironizou Henfil no Pasquim. “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias”, protestou Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil.

+Leia também: Vera Iaconelli: “Avanços da mulher são respondidos com avanços da violência masculina”

Condenação tardia e mudança na lei

Inconformada, a promotoria recorreu da sentença. Foi marcado, então, um novo julgamento. Dessa vez, Doca foi condenado a 15 anos por homicídio qualificado. Cumpriu três em regime fechado, dois no semiaberto e o restante em liberdade condicional. Em 2006, publicou sua versão dos fatos. Morreu em 2020, aos 86 anos.

Em 2023, a tese da legítima defesa da honra foi declarada inconstitucional, em decisão unânime e histórica, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão classificou a tese como expressão de uma sociedade patriarcal, machista e misógina.

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O avanço do feminicídio no Brasil

No dia 30 de dezembro de 1976, quando Ângela Diniz foi assassinada com três tiros no rosto e um na nuca, o crime de feminicídio ainda não existia no Brasil. Passou a vigorar em 9 de março de 2015, com a aprovação da Lei 13.104. Em apenas dez anos, o país registrou 11.930 casos de feminicídio. São, em média, três mulheres mortas por dia pelo simples fato de serem mulheres.

Desde então, assassinatos de mulheres em contexto de violência doméstica, violência familiar ou discriminação de gênero passaram a ser considerados crimes hediondos, com penas que podem chegar a 30 anos de prisão. Há ainda agravantes, como crimes cometidos contra gestantes ou na presença de familiares da vítima.

Números que escancaram a desigualdade

Em 2015, o primeiro ano da série histórica, o número de feminicídios no Brasil era de 535. Em 2024, bateu um recorde assustador: 1.492. Um aumento de 178,87%. No mesmo período, 3.870 mulheres escaparam por pouco de virar estatística, 51.866 sofreram violência psicológica e 95.026 foram vítimas de stalking. Desde 2021, perseguir alguém física ou virtualmente é considerado crime no Brasil.

Ainda segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, das vítimas de feminicídio, 63,6% eram negras, 70,5% tinham entre 18 e 44 anos, 64,3% foram mortas dentro de casa e 97% assassinadas por homens. Um detalhe: 8 em cada 10 foram mortas por companheiros ou ex-companheiros.

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No início do mês, o presidente do STF afirmou que a proteção da vida e da dignidade das mulheres é um dever constitucional. No domingo, dia 7, milhares de manifestantes foram às ruas de 24 capitais para protestar contra a epidemia de feminicídio. Cartazes diziam: “Nem uma a menos” e “Parem de nos matar”.

Em caso de violência doméstica, ligue 180 e denuncie o agressor. Se estivesse viva, Ângela Diniz estaria hoje com 81 anos. Deixou três filhos. Seu corpo está sepultado no Cemitério Parque da Colina, em Belo Horizonte.

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