Marion Nestle, 89 anos, é uma figura que impressiona. Com um meio sorriso quase permanente no rosto, cabelos cacheados brancos, a cientista reconhecida mundialmente fala com generosidade enquanto toma um café com leite em um hotel em São Paulo.
Seu currículo a precede: já publicou mais de 15 livros e tem uma carreira acadêmica extensa, que começou na biologia molecular, onde teve os primeiros contatos com nutrientes, e culminou em estudos mais amplos sobre a alimentação. É uma especialista na “política da comida”, por assim dizer.
Mais recentemente, ela foi uma das autoras da série de estudos do The Lancet sobre os ultraprocessados, que expõe com metodologia científica os danos da categoria à saúde e o extenso poderio econômico e político das grandes corporações alimentícias.
De passagem pelo Brasil a convite da ACT Promoção da Saúde, Nestle passou por Manaus e Brasília, e participou de encontros com lideranças indígenas, eventos com profissionais de saúde e do congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Antes, conversou conosco sobre o trabalho recém-publicado e outros tópicos quentes do mundo da nutrição. Confira a seguir:
VEJA SAÚDE: O Lancet acaba de publicar um especial sobre comidas ultraprocessadas e seus riscos. Qual a importância dessa publicação e suas principais conclusões?
Marion Nestle: Eu sou co-autora de dois dos três trabalhos, então preciso deixar isso claro antes de tudo. A publicação abre vários novos caminhos. Primeiro, ela define ultraprocessados como comida feita com o propósito de gerar lucro às companhias.
E eles são pensados para serem irresistivelmente deliciosos, para que você queira comer mais e mais. Isos é importante porque é a primeira vez que vejo esse propósito tão bem definido em um artigo científico.
O segundo ponto é que o grupo de trabalho fez uma revisão das evidências científicas sobre o efeito dos ultraprocessados na saúde, que a esse ponto são impressionantes.
O que dizem essas evidências?
Que pessoas cuja dieta tem uma grande proporção de ultraprocessados têm um risco muito maior de obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e várias outras condições clínicas muito comuns hoje em dia, incluindo maior mortalidade.
Muitos desses estudos sejam observacionais, ou seja, mostram apenas correlação, não provam causalidade. Mas agora há cinco ou talvez seis ensaios clínicos, alguns extremamente bem controlados, mostrando que os ultraprocessados fazem as pessoas consumir mais calorias do que consumiriam de outra forma, sem perceber.
E não apenas algumas calorias a mais, mas centenas. O primeiro desses estudos mostrou uma diferença de 500 calorias e outros estudos mostram diferenças de 800 ou 1.000 calorias.
Então, para mim, a evidência de que as pessoas seriam mais saudáveis se comessem menos ultraprocessados parece bastante sólida. Não sei quanta evidência mais seria necessária.

Alguns profissionais de saúde dizem que o mais importante não é nível de processamento da comida, mas o teor calórico. O que você pensa sobre isso?
Seria interessante fazer esse experimento [se comendo a mesma quantidade de calorias, os ultraprocessados ainda fariam mal]. Não sei qual seria o resultado, mas é muito difícil separar calorias de qualquer outra coisa.
Sabe, eu sou uma pessoa das calorias. Eu olho primeiro para elas. Se 75% dos adultos americanos estão com sobrepeso ou obesidade, isso tem a ver com excesso de calorias, ponto final.
E se você está comendo alimentos que levam você a consumir mais calorias sem perceber, me parece que deveria comer menos desses alimentos. Faz sentido para mim. Se você consegue ingerir ultraprocessados e controlar suas calorias, ótimo, vá em frente e veja o que acontece.
A série do Lancet mostra que há um sistema pensado para encorajar as pessoas a comer mais e desestimular escolhar saudáveis. Pode explicar como isso funciona e quais as evidências dessa afirmação?
Nos Estados Unidos, há 4 mil calorias disponíveis por dia para cada habitante. Isso é quase o dobro do que a população precisa.
Para uma empresa alimentícia prosperar num ambiente onde a oferta calórica é duas vezes maior do que a necessidade real das pessoas é preciso muita estratégia de venda.
Publicidade, alegações de saudabilidade e embalagens fabulosas são as ferramentas mais óbvias. Mas, além disso, essas grandes corporações usam as redes sociais e lobistas que trabalham nos bastidores para garantir que o governo não aprove nenhuma regulação que possa comprometer seu faturamento. É aí que entra a política.
+Leia também: “A causa básica da pandemia de obesidade são as corporações de ultraprocessados”
Você compara a indústria dos ultraprocessados à do tabaco. Qual é a relação entre as duas coisas?
O marketing é o mesmo. A indústria alimentícia adaptou as mesmas estratégias da indústria do tabaco. Uma delas é lançar dúvidas sobre qualquer pesquisa desfavorável aos negócios.
Então, por exemplo, se uma pesquisa diz que bebidas açucaradas ou adoçadas artificialmente não são boas para a saúde, eles desacreditam os resultados e dizem que os refrigerantes são só um alimento entre vários, que o que importa mesmo é o conjunto de hábitos.
Eles também contratam cientistas e financiam pesquisas para dizer que seus produtos são saudáveis ou ao menos não fazem tão mal. E, é claro, o lobby para garantir que nenhum governo possa tomar uma atitude a respeito.
O que pensa sobre os ataques à classificação NOVA [que define o conceito de ultraprocessados, elaborada pelo cientista brasileiro Carlos Monteiro]?
A classificação NOVA é uma ameaça existencial à indústria alimentícia. Comer menos é muito ruim para os negócios e a redução no consumo de ultraprocessados prejudica os lucros das empresas. Então é claro que irão atacar esses conceitos.
E o que a classificação diz é que alimentos altamente processados ou ultraprocessados, têm sua matriz [termo técnico para o “arranjo” químico e físico original da comida] foi destruída — e há algo nessa destruição que não faz bem à saúde. Ela também diz que é muito melhor comer comida que se parece com comida.
Ok, esse é um conceito novo, mas foi testado. Há 3 mil estudos com “ultraprocessados” no título, e mais de 100 são ensaios clínicos, sendo que mais de 90 deles mostram efeitos negativos.
Aliás, o próprio autor do primeiro ensaio clínico, Kevin Hall, fez o estudo porque não acreditava no conceito. Achava que o processamento da comida não tinha nada a ver com desfechos de saúde. E ele ficou chocado com os resultados, que mostraram que os ultraprocessados levaram a um consumo de 500 calorias a mais por dia.
+Leia uma entrevista com Kevin Hall e saiba mais sobre o trabalho
Por que a matriz alimentar é importante?
Por exemplo: se você come uma laranja, você não está comendo só o açúcar na laranja, mas todas as vitaminas, minerais, fibras.
Você precisa mastigar, digere mais devagar, seu corpo precisa fazer bem mais coisa do que quando você toma um suco ou uma bebida açucarada, nos quais a fruta teve sua matriz destruída.
Com as comidas ultraprocessadas, é a mesma coisa: você só está ingerindo mais calorias de uma vez, e nosso metabolismo não foi feito para lidar com isso.
Há muito “buzz” nas redes sociais sobre proteínas e suplementos proteicos. Realmente precisamos de tanto assim?
Isso não faz nenhum sentido. A maioria das pessoas come duas vezes mais proteína do que precisa. Quem precisa de mais são atletas de elite, que se exercitam por horas e horas seguidas, todos os dias. Exceto que você esteja numa dieta muito restritiva, é fácil atingir as metas diárias, inclusive se você for vegano, se comer leguminosas.
Eu acho que, se as pessoas querem comer proteína de ervilha, então deveriam comer a ervilha. Ervilhas são muito saudáveis. Proteínas isoladas de ervilha, separadas de sua matriz alimentar? Não tenho tanta certeza.
O que você come hoje em dia? A que atribui a sua longevidade?
Sigo meu próprio conselho dietético, que é tão simples que o jornalista Michael Pollan resume em sete palavras: Coma comida de verdade, não muita, principalmente plantas.
Amo comida, amo comer e adoro vegetais. Então acho fácil seguir minhas próprias regras.
O atual Secretário de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr, é um crítico ferrenho dos ultraprocessados, mas também é um notório disseminador de narrativas anticiência. Como o governo americano tem lidado com a categoria?
Não tem lidado. Quando RFK Jr. assumiu o cargo, parecia ter uma agenda alimentar muito forte. Ele queria ultraprocessados fora de lancheiras e cantinas, comida sem agrotóxicos, menos fast food. Mas um ano se passou e agora ele não fala mais do assunto.
Suas principais conquistas foram convencer a indústria a parar de usar corantes artificiais até 2027. E isso até é legal, mas cereal açucarado colorido com vegetais ainda será cereal açucarado colorido.
A outra coisa foi convencer a Coca-Cola a substituir açúcar de cana por xarope de milho rico em frutose. Não consigo sequer dizer isso sem rir. Ambos são açúcar, você só está agradando setores diferentes da economia.
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