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Em outubro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso da tirzepatida, princípio ativo do Mounjaro, para o tratamento da apneia obstrutiva do sono em pessoas com obesidade. Como a apneia também é acompanhada por dentistas, abriu-se a possibilidade desses profissionais prescreverem a substância.
“Essa modificação da Anvisa acabou abrindo um hiato legal, porque o dentista, como um profissional prescritor, pode indicar qualquer medicamento, desde que essa medicação tenha uso dentro da odontologia”, explica Bianca Zambiasi, conselheira do Conselho Federal de Odontologia (CFO).
A decisão da Anvisa foi embasada nos resultados de um grande estudo, publicado no New England Journal of Medicine. De acordo com a pesquisa, o uso do medicamento por um ano entre pacientes com o quadro de apneia (distúrbio em que a respiração para e recomeça repetidas vezes durante o sono) levou a uma redução de cerca de 60% na gravidade da condição.
Mas não é só isso. A substância também promoveu um resultado mais conhecido: a perda média de 18 a 20% do peso corporal dos participantes do estudo. Também foi observada melhora da pressão arterial, qualidade do sono e redução de inflamações.
É um pacote de efeitos que mostra como essa medicação atua no corpo inteiro (indo muito além da apneia) – e é aí onde mora a discussão sobre o tema.
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Afinal, pode ou não prescrever?
Em meio a esse contexto, a orientação do Conselho Federal de Odontologia é de que, sim, o cirurgião-dentista possui autonomia para prescrever Mounjaro, mas que ele não deve fazer isso sozinho.
Em primeiro lugar, a entidade reconhece a indicação do Mounjaro para tratar a apneia como exclusiva para pessoas com obesidade e diz que, por isso, os profissionais devem ter muito cuidado, até porque, entre esse público, existem fatores complicadores de saúde, disse o CFO em nota oficial.
“A gente entende que o dentista não trata a obesidade. Ele trata a apneia”, diz Bianca. Por isso, a recomendação do CFO é de que esses profissionais, preferencialmente, não façam a prescrição desses medicamentos. No entanto, se fizerem, devem ter a garantia de que o paciente está sendo acompanhado por uma equipe médica e multidisciplinar também.
“Ele pode prescrever, mas não sozinho”, diz Bianca. Caso contrário, “o profissional pode ser processado eticamente por extrapolar os limites da odontologia“, explica a conselheira. As sanções variam de acordo com a gravidade das infrações, mas podem chegar a perda do registro profissional.
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O que dizem as entidades médicas
O médico Bruno Halpern, vice-presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), participou do estudo que levou à alteração da bula do Mounjaro, acrescentando a indicação para apneia.
Segundo o médico, a perda de peso expressiva causada pelo medicamento é o que mais provavelmente explica a melhora do distúrbio.
No entanto, ele faz a ressalva de que ainda existem mecanismos a serem discutidos sobre o seu possível efeito direto no quadro, mas afirma: “isso não tem relação com a apneia do sono vinculada a alterações de arcada dentária e questões estruturais desse tipo”.
Diante disso, ele opina: “não faz sentido que dentistas prescrevam essa medicação para essa indicação específica”, avalia.
Além da Abeso, a Associação Médica Brasileira (AMB) considera que a prescrição da tirzepatida deve permanecer exclusivamente sob responsabilidade médica. O motivo seria o fato de o medicamento ser de uso sistêmico. “Envolve riscos clínicos relevantes e demanda acompanhamento rigoroso, especialmente em pacientes com comorbidades”, completa, em nota enviada para VEJA SAÚDE.
O Conselho Federal de Medicina também firma posição contrária à medida. Segundo nota enviada pela entidade, “ao prescrever terapias de risco elevado sem formação médica e sem habilitação legal para avaliação integral do paciente, cirurgiões-dentistas extrapolarão suas atribuições, colocando a população em situação de vulnerabilidade”, diz.
Do outro lado, o conselho dos odontologistas define que o dentista poderá como um prescritor auxiliar, “quando o paciente não conseguir um horário com um endocrinologista, um nutrólogo ou outro profissional; quando ele já estiver em um tratamento multidisciplinar, mas precisar apenas da receita”, diz Bianca.
Bula foi alterada
Vale ainda mencionar que, inicialmente, as bulas do medicamento continham a inscrição “uso sob prescrição médica”, mas, desde junho de 2025, os dizerem foram alterados para somente “uso sob prescrição”. Entretanto, até aquele momento, não havia aprovação de uso para tratamentos que passam pela odontologia, como a apneia.
“Então o nosso posicionamento é: existe um hiato, ou seja, ‘poder… pode’, mas a gente não indica prescrever fora de um conjunto multidisciplinar, porque o dentista não está apto e não deve tratar obesidade”, diz Bianca.
Os riscos
Ainda assim, as entidades médicas dizem temer a banalização do tratamento. “O ponto aqui não é restringir o tratamento, e sim evitar a banalização da prescrição de medicamentos para obesidade. Isso não se limita a dentistas. Há médicos mal-intencionados que prescrevem produtos não regulados em clínicas”, comenta Halpern.
“Isso é ruim para todo mundo, inclusive para as medicações sérias, que acabam ganhando fama de serem algo apenas “estético”, quando, na verdade, são ferramentas importantes para ajudar muita gente”, diz o médico.
Clayton Macedo, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), também é contra, considerando que a permissão pode abrir brechas para indicações irregulares.
“A legislação permite que o odontólogo trate a apneia do sono, mas dentro de um contexto em que o médico acompanha o processo. Cada profissional deve atuar na sua área”, avalia o endocrinologista.
Mas ele ressalta: “Há muitos riscos envolvidos nesse processo. O odontólogo pode melhorar diversas questões, mas a falha é que, como eles podem legalmente prescrever qualquer remédio, acabam prescrevendo mesmo sem capacitação”, disse o médico para reportagem de VEJA SAÚDE.
“O que nós queremos é que pessoas responsáveis prescrevam mais tratamentos para obesidade de forma séria, como a doença crônica que ela é“, resume Halpern.
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