
Pesquisadores do Einstein Hospital Israelita, em São Paulo, apresentaram os resultados de testes iniciais da primeira terapia celular CAR-T totalmente brasileira. Esse tipo de tecnologia, tida como promessa da oncologia em todo o mundo, atua reprogramando as células de defesa do próprio paciente para que ataquem o câncer.
Esta foi a primeira vez que uma versão desse tratamento foi 100% desenvolvida e testada na América Latina, sem uso de tecnologias do exterior. As conclusões foram publicadas, no último sábado (6), no periódico da American Society of Hematology (ASH), maior sociedade profissional do mundo dedicada à hematologia.
Como resultado, o modelo nacional, desenvolvido em parceria com o Ministério da Saúde, foi capaz de promover a remissão completa da doença – ou seja, o desaparecimento de sinais detectáveis – em 72% dos pacientes que receberam a terapia. Além disso, 81% dos participantes tiveram alguma resposta positiva.
Para especialistas, os achados da pesquisa, primeira a ser aprovada pela Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa), representam maior viabilidade para o tratamento entre os latino-americanos, já que a existência de uma tecnologia local pode facilitar o acesso e baratear a terapia.
“O projeto surgiu para enfrentar o grande desafio de acesso em países de média renda, onde os CAR-T comerciais são de alto custo e logisticamente inviáveis”, conta um dos pesquisadores líderes do estudo, o médico Nelson Hamerschlak.
No Brasil, as primeiras pesquisas com CAR-T começaram em 2019, com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP), em parceria com o Instituto Butantan e apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Desde então, outras iniciativas nacionais avançaram na área, como o projeto Carthedral (da própria FMRP), o estudo Mandacarú (da Universidade Federal do Ceará), o programa de CAR-T para mieloma múltiplo do Instituto Butantan e o projeto de vetor triplo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O diferencial do anúncio mais recente do Einstein é que, pela primeira vez, uma CAR-T foi totalmente desenvolvida no País, sem qualquer tecnologia importada.
Como o estudo foi realizado
A terapia CAR-T é uma forma de imunoterapia personalizada que envolve algumas etapas. Primeiro, é feita a coleta de linfócitos T, que são glóbulos brancos do sistema imunológico do paciente capazes de destruir células infectadas ou anormais.
O segundo passo é a modificação genética desses linfócitos em laboratório. A ideia é que eles sejam “reprogramados” para que reconheçam e passem a atacar especificamente células cancerígenas.
Depois, o material é reintroduzido no organismo do paciente para que essa guerra microscópica possa ser iniciada. Esse tipo de terapia vem sendo usada em casos de leucemias, linfomas e mieloma múltiplo que não respondem aos tratamentos convencionais.
Todos estes são considerados cânceres do sangue, e têm como característica em comum a agressão às células do sistemas imunológico. Assim, eles enfraquecem esse sistema e causam crescimento descontrolado de células de defesa, que passam a funcionar mal.
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Com isso em mente, os cientistas brasileiros realizaram o estudo, inicialmente, com a participação de 18 pacientes voluntários. Todos eles possuíam algum tipo de leucemia ou de linfoma que já havia voltado ou não respondido a tratamentos anteriores. Após análises, 11 deles foram considerados, de fato, elegíveis para receber o tratamento celular.
Os pacientes tinham idade entre nove e 69 anos. Em média, cada um já tinha passado por quatro tratamentos anteriores. Para dar início à terapia, os linfócitos T de cada paciente foram colhidos e modificados no próprio hospital.
Depois de 12 dias de fabricação, as células modificadas geneticamente foram reintroduzidas, por meio de infusão, no organismo dos pacientes. Antes disso, porém, os participantes receberam uma quimioterapia leve para preparar o corpo para essa mudança.
Segundo os pesquisadores, após quase um ano de acompanhamento, sete dos onze participantes permaneciam sem progressão do câncer.
Entre os resultados negativos, dois pacientes com linfoma não-Hodgkin morreram, um por progressão acelerada da doença e outro por uma infecção grave logo após a infusão. Já dentre aqueles que não haviam alcançado remissão completa, houve um caso de recaída após um ano e outro de progressão tardia após resposta parcial.
Além da eficácia, também foi observada a segurança do tratamento brasileiro. Os efeitos colaterais, segundo os pesquisadores, foram os que já são esperados para terapias CAR-T.
A maioria dos pacientes (90%) teve síndrome de liberação de citocinas (proteínas), uma reação inflamatória comum quando o sistema imunológico é ativado intensamente. De acordo com o estudo, os quadros foram majoritariamente leves e todos se recuperaram.
Alterações neurológicas temporárias surgiram em 45% dos pacientes, mas também foram reversíveis. Além disso, infecções ocorreram em 72% dos casos, incluindo pneumonia bacteriana e reativação de citomegalovírus. Vale dizer que, de acordo com os pesquisadores, essas são situações esperadas em pacientes com imunidade reduzida.
Ainda, a manufatura das células – o processo de coletar linfócitos T, modificá-los no laboratório do hospital e reinfundi-los no paciente – teve 100% de sucesso. Todo o ciclo, conhecido como vein-to-vein (ou veia à veia, em português), durou cerca de 22 dias, um tempo considerado excelente para uma plataforma acadêmica, diz o artigo.
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O que o avanço simboliza
Segundo Hamerschlak, esse ritmo foi possível porque a fabricação ocorreu no modelo point-of-care, quando testes diagnósticos são feitos diretamente no local de atendimento ao paciente. Sobre o futuro, o pesquisador afirma que produzir CAR-T localmente pode ampliar o acesso ao tratamento e dar nossas chances para as pessoas com cânceres do sangue.
“Para esses pacientes, CAR-T representa, literalmente, a possibilidade de uma segunda chance. Antes da chegada dessa tecnologia, muitos doentes esgotavam as linhas convencionais e tinham expectativa de sobrevida muito curta”, avalia.
Além disso, a expectativa é de que a tecnologia possa, um dia, ser implementada ao Sistema Único de Saúde (SUS). “A manufatura acadêmica permite adaptar o processo à realidade do SUS, com protocolos padronizados e negociação centralizada”, diz o médico.
Ainda de acordo com Hamerschlak, o projeto conduzido no Einstein também trouxe uma série de aprendizados que deve orientar as próximas fases de pesquisa clínica, como estudos em mieloma, novas gerações de CAR-T e, principalmente, “a incorporação responsável dessa tecnologia no sistema de saúde brasileiro”, diz.
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