
No dia 18 de outubro de 2024, o poeta e filósofo Antônio Cícero, de 79 anos, viajou para Paris pela última vez. Ao lado do marido, o figurinista Marcelo Pies, de 62, os dois assistiram a uma exposição no Centro Georges Pompidou, visitaram a igreja Sainte-Chapelle e jantaram no restaurante La Coupole.
Dois dias depois, seguiram para Zurique, na Suíça. Lá, o imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) cumpriu seu último desejo: uma morte digna e indolor. “Minha vida se tornou insuportável”, confessou, em sua carta de despedida.
Cícero tomou a decisão em julho de 2023, depois de receber o diagnóstico de Alzheimer. Em pouco tempo, a doença neurodegenerativa se tornou implacável: o impediu de escrever versos – como “Tolice é viver a vida assim sem aventura”, da canção O Último Romântico, de Lulu Santos – e de redigir ensaios.
Não bastasse, já não lembrava mais o que tinha feito na véspera, nem reconhecia as pessoas que encontrava pelas ruas. “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”, concluiu. Morreu no dia 23 de outubro de 2024.
Debate sobre o direito de morrer com dignidade
A morte de Cícero inspirou o advogado Antônio Penteado Mendonça, presidente da Academia Paulista de Letras (APL), a organizar, no próximo dia 18, das 9h às 18h, o evento Viver e Morrer com Liberdade.
O objetivo do encontro é debater a chamada morte voluntária assistida (MVA), prática legalizada em 15 países: oito da Europa (Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Holanda, Luxemburgo, Portugal e Suíça), três da América do Sul (Equador, Colômbia e Uruguai), dois da América do Norte (EUA e Canadá) e dois da Oceania (Austrália e Nova Zelândia).
Morte voluntária assistida (MVA) é uma expressão que engloba as duas situações em que a pessoa doente recebe assistência para abreviar a vida: suicídio assistido e eutanásia. No primeiro caso, o agente é a própria pessoa; no segundo, o agente é externo. Em ambos os casos, os procedimentos são feitos por determinação do indivíduo.
Uma curiosidade: eutanásia, em latim, significa “morte boa”, ou seja, sem sofrimento. As duas práticas são ilegais no Brasil. A eutanásia é considerada homicídio e o suicídio assistido, crime de participação ou indução ao suicídio.
“Entendo que a vida é um bem do indivíduo. Ele é o dono da sua vida e não o Estado, ou quem quer que seja. Por essa razão, temos o direito de escolher como e quando morrer”, afirma Mendonça, presidente da APL.
“Espero que, um dia, suicídio assistido ou eutanásia sejam legalizadas no Brasil. Se a pessoa é dona da própria vida, então, ela é dona da própria morte. Essa discussão tem avançado no mundo e não há razão para o Brasil não avançar nessa direção”.
A liberdade na berlinda
Dez palestrantes foram convidados para debater sobre o assunto. O psiquiatra Daniel Barros, o geriatra Alexandre Kalache e a historiadora Mary Del Priore estão entre os nomes já confirmados. Quem vai participar também é Leandro Karnal.
Doutor em História Cultural na USP, é membro da APL desde 2021. Como escritor, já publicou, sozinho ou em parceria, mais de 20 livros, como Pecar e Perdoar: Deus e o Homem na História (Harper Collins), Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia (Leya) e O Dilema do Porco-Espinho: Como Encarar a Solidão (Planeta).
“Tenho direito a votar e a escolher minha religião. Sou livre para casar ou não. Ter quinze filhos ou nenhum. Por que não tenho direito a escolher como e quando morrer? Tudo aquilo que não prejudica outras pessoas é meu direito. Só eu posso dizer quando a vida não tem mais sentido ou quando o seu custo excede aquilo que eu acho válido”, pondera Karnal.
“Devemos aprovar um dia, mas é impossível dizer quando. Agora, vamos pensar: os países que já aprovaram a medida em comparação aos que não aprovaram. Onde você preferiria viver?”, indaga.
Em busca da felicidade
Karnal acaba de lançar seu novo livro, O Dilema das Galinhas Felizes – Diálogos Sobre a Ciência da Felicidade (Record), em parceria com Gustavo Arns, idealizador do Congresso Internacional da Felicidade. Mas será que morte (tema da palestra) e felicidade (do livro) têm algo em comum?
“Felicidade é subjetiva. É uma questão de valores. Os mártires cristãos, por exemplo. Poderiam mentir e viver mais. Disseram a verdade e perderam a vida. Essa é uma escolha: a partir dos meus valores, decido morrer. Sou eu que decido por qual valor devo morrer ou por qual valor devo viver. Uns morrem para ganhar a vida eterna no céu. Outros, para não viver o inferno de ter um corpo ligado a uma máquina por meses ou anos. A decisão tem que ser minha. Nunca admitirei que a decisão sobre a minha vida seja do Estado”, afirma Karnal.
A ideia de escrever o último livro surgiu durante o café da manhã. Ao preparar seu omelete, Karnal esbarrou no aviso da embalagem: “Ovos de Galinhas Felizes”. “Imaginei as aves alegres, cacarejando”, diverte-se. “Exibiriam sorrisos se dentes tivessem”.
O texto nasceu de uma troca de mensagens entre os autores que ocorreu entre os dias 26 de fevereiro e 26 de abril de 2025. Entre uma reflexão e outra, eles citam filmes, como Matrix, dirigido pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski, e poemas, como “Não discuto com o destino / O que pintar / Eu assino”, escrito pelo poeta Paulo Leminski.
Ele também comenta a importância da religião na busca pela felicidade:
“O sentido da existência pode ser religioso ou filosófico. Não tenho dúvida de que a crença em um sentido metafísico ou teológico pode levar à felicidade. Quem encontra sentido para a sua existência, e investe nele, leva vantagem, seja religioso, ateu ou agnóstico. Mas, nada disso garante felicidade porque posso ser um fundamentalista angustiado com a salvação. Um fundamentalista que se explode como homem-bomba é um religioso! Não é a religião ou o ateísmo, é a qualidade do propósito que elejo como meta. É possível ser feliz com e sem Deus”.
Compartilhe essa matéria via: